Destransição de Gênero: Explorando um Processo Complexo e Multifacetado
A destransição de gênero é um tema que tem ganhado crescente atenção na mídia e na academia, revelando uma dimensão pouco explorada do espectro das identidades trans. Embora a transição de gênero — o processo no qual uma pessoa se reconhece e vive em conformidade com uma identidade de gênero diferente daquela atribuída ao nascimento — seja cada vez mais discutida, a destransição levanta questões igualmente importantes sobre identidade, apoio social, e o próprio conceito de gênero.
O que é a Destransição?
A destransição ocorre quando uma pessoa que passou pela transição de gênero decide reverter, parcial ou totalmente, as mudanças feitas durante esse processo. Essas mudanças podem ser sociais (como voltar a usar o nome de nascimento), legais (como a reversão de documentos) ou médicas (como a interrupção da terapia hormonal ou a reversão de cirurgias).
Esse processo pode ser motivado por uma série de fatores, como uma mudança de entendimento sobre a própria identidade de gênero, questões de saúde mental, complicações médicas ou pressões sociais. É importante destacar que a destransição não invalida as experiências trans dessas pessoas e, para muitos, não significa arrependimento, mas sim uma necessidade de ajustar a própria trajetória de vida em busca de bem-estar.
Motivos para a Destransição
Diversos estudos, embora ainda escassos, sugerem que os motivos para a destransição são tão variados quanto o processo de transição em si. Entre os principais fatores estão:
Pressão Social e Familiar: Algumas pessoas destransicionam devido à falta de apoio de familiares, amigos ou da sociedade em geral. A constante discriminação e preconceito podem ser fatores que levam alguém a repensar sua transição, especialmente em contextos de grande hostilidade. De acordo com um estudo realizado no Reino Unido, uma porcentagem significativa de pessoas que destransicionaram mencionaram a pressão social como uma das principais razões.
Saúde Mental: Em alguns casos, a transição não resolve as questões psicológicas ou emocionais que precederam o processo, como a disforia de gênero. Isso pode gerar uma percepção de que a transição, por si só, não foi suficiente para proporcionar o bem-estar esperado, levando a pessoa a optar pela destransição. A abordagem de saúde mental, nesse contexto, é crucial para apoiar tanto o processo de transição quanto a destransição.
Dificuldades Médicas: Os tratamentos hormonais e cirúrgicos são processos invasivos e que podem trazer efeitos adversos. Algumas pessoas podem enfrentar complicações ou insatisfação com os resultados, optando por descontinuar os tratamentos ou buscar a reversão de cirurgias. Vale destacar que a reversão nem sempre é possível, e as mudanças corporais permanentes podem gerar novas questões de identidade e aceitação.
Redefinição Pessoal de Gênero: Nem todas as experiências trans seguem uma linha rígida. Algumas pessoas que destransicionam continuam a se identificar fora do binário de gênero ou como "gender fluid". Para essas pessoas, a destransição pode ser vista como uma maneira de explorar sua identidade de gênero em constante evolução, ao invés de uma simples volta ao ponto inicial.
Estatísticas sobre Destransição
As estatísticas sobre a destransição ainda são limitadas, em parte pela falta de dados abrangentes e pela natureza sensível do tema. No entanto, um estudo realizado por Lisa Littman, em 2021, apontou que cerca de 8% dos indivíduos que passam pela transição acabam destransicionando. Outra pesquisa da clínica Tavistock, no Reino Unido, revelou que menos de 1% dos pacientes transgêneros buscaram reverter sua transição. Estes números indicam que, embora a destransição seja uma realidade, ela ocorre em uma minoria dos casos.
Além disso, é importante diferenciar os motivos por trás da destransição. Muitas pessoas não destransicionam por arrependimento em relação à identidade trans, mas sim devido a pressões externas ou falta de apoio adequado durante o processo de transição. Para essas pessoas, a destransição pode ser vista como uma adaptação às suas circunstâncias, e não como uma negação de sua identidade.
No Brasil, o caso de André Dourado ilustra as dificuldades que muitas pessoas enfrentam ao longo da jornada de transição e destransição. André, falou ao portal Universa UOL sobre sua experiência.
Natural de Brasília, passou por uma transição para mulher trans, mas, com o tempo, percebeu que não estava em paz com essa nova identidade. Ele destransicionou após sentir que não havia sido respeitado ou compreendido no processo de transição, enfrentando uma série de desafios, incluindo a falta de apoio psicológico e preconceitos.
Em seu relato, André conta que a transição trouxe uma série de conflitos internos e que sua verdadeira identidade não estava alinhada com o gênero feminino. Ele menciona que sofreu discriminação de diversas formas e que se sentiu pressionado a transicionar sem o suporte adequado para refletir sobre sua real identidade. Sua destransição foi um processo de reconexão consigo mesmo, e ele agora se identifica como homem gay.
Essa história ressalta a importância de um acompanhamento psicológico de qualidade durante todas as fases da transição e destransição. André também enfatiza que muitos dos problemas que enfrentou não estavam relacionados apenas à disforia de gênero, mas também a pressões externas que influenciaram sua percepção de identidade.
Outra história marcante e recente é a de Carlos Emanuel, anteriormente conhecido como Catty Lares, uma influenciadora digital brasileira que compartilhou nas redes sociais tanto sua transição quanto sua destransição. Carlos começou sua transição em 2016, incluindo tratamentos hormonais e cirurgias como a colocação de próteses de silicone.
No entanto, em 2023, ele anunciou sua destransição, motivado por uma jornada de fé e espiritualidade. Ele afirmou que sua decisão de destransicionar foi influenciada por sua conversão ao cristianismo, e hoje compartilha mensagens sobre aceitação e fé em suas redes sociais, falando sobre como encontrou sua verdade pessoal. A decisão de Carlos gerou tanto apoio quanto críticas, especialmente dentro da comunidade LGBTQIA+
Impactos Positivos e Negativos
O processo de destransição pode ter uma série de impactos tanto positivos quanto negativos, variando conforme as circunstâncias e o suporte recebido.
Impactos Positivos
Autoconsciência e Ajuste Identitário: Para alguns, a destransição pode trazer alívio e uma reconexão com uma identidade mais verdadeira. Esse processo pode ser uma jornada pessoal de autodescoberta, onde a pessoa se sente mais confortável com uma nova (ou antiga) visão de si mesma, independentemente dos papéis de gênero.
Reconstrução de Relacionamentos: Em certos casos, a destransição pode restaurar relações familiares e sociais que foram abaladas durante a transição. No entanto, é fundamental que esse processo seja conduzido de maneira autêntica, sem ceder apenas à pressão de terceiros.
Impactos Negativos
Preconceito e Estigmatização: A destransição ainda é um tema carregado de estigmas, tanto por parte da sociedade quanto dentro da própria comunidade LGBTQIA+. Muitas vezes, aqueles que destransicionam são julgados ou vistos como “traidores” da causa trans. Essa dupla discriminação pode levar ao isolamento social e a uma piora da saúde mental.
Consequências Físicas e Médicas: Alguns tratamentos médicos, como cirurgias de redesignação sexual, são irreversíveis ou muito difíceis de reverter. A destransição, nesses casos, pode não ser capaz de desfazer todas as mudanças físicas, o que pode gerar novos desafios psicológicos e de aceitação.
Dificuldades Psicológicas: A falta de um suporte profissional adequado durante a destransição pode agravar problemas de saúde mental, como ansiedade, depressão e confusão em relação à própria identidade. As pessoas que destransicionam frequentemente enfrentam crises emocionais ao lidar com a desconexão entre sua identidade de gênero e a percepção social.
O Papel Crucial do Apoio Profissional
A destransição, assim como a transição, demanda um acompanhamento cuidadoso e profissional. A presença de psicólogos, médicos e assistentes sociais especializados é fundamental para garantir que a pessoa receba o apoio necessário em todas as etapas do processo. O acompanhamento psicológico é essencial para que a pessoa possa explorar sua identidade de gênero de forma saudável, seja no contexto de uma transição ou de uma destransição.
No Brasil, iniciativas voltadas para o cuidado integral da saúde trans têm sido fortalecidas, mas o apoio àqueles que destransicionam ainda é limitado. É essencial que os profissionais de saúde e a sociedade em geral entendam a complexidade desse processo e ofereçam acolhimento, sem julgamentos, às pessoas que optam pela destransição.
Reflexões
A destransição de gênero é um processo profundo, que envolve uma reflexão intensa sobre a própria identidade, a relação com o corpo e o impacto das pressões sociais. Para muitos, a destransição é uma forma de se reconectar com a própria essência, enquanto para outros é uma necessidade imposta pelas circunstâncias. Em qualquer cenário, é crucial que essas pessoas sejam recebidas com empatia, respeito e suporte adequado.
A crescente visibilidade do tema nos oferece uma oportunidade de discutir com mais profundidade as várias facetas das experiências trans, sempre com foco no bem-estar e na liberdade de cada pessoa de definir sua própria trajetória de vida.
Forte abraço!
Referências:
Brito, C. F., Toneli, M. J. F., Oliveira, J. M. (2022). “Destransição de gênero” como trânsito e errância: abertura para novas corporalidades. Revista Periódicus.
Littman, L. (2021). Individuals Treated for Gender Dysphoria with Medical and/or Surgical Transition Who Subsequently Detransitioned: A Survey of 100 Detransitioners. Archives of Sexual Behavior.
Tavistock Clinic, UK. Report on Gender Identity Development Service, 2020.
SciELO - Caminhos percorridos por transexuais: em busca pela transição de gênero. Revista de Saúde Pública.
Ele é uma ex-mulher trans: 'Muito preconceito para enfrentar' (uol.com.br)
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